sábado, 26 de fevereiro de 2011

Imagem distorcida do HardCore

Na década de noventa, o nome hardcore foi usado de uma forma infeliz por uma mídia que pouco assimilou as tendências mais radicais do rock. O pedantismo de muitos jornalistas, no mundo inteiro, acabou por corromper os conceitos trabalhosamente concebidos há muito tempo.

O hardcore é um estilo que surgiu no final dos anos 70, mais precisamente 1978, quando surge o grupo californiano Dead Kennedys. Sua intenção original é ser uma resposta mais enérgica ao punk rock, que para os punks mais radicais estava sucumbindo à acomodação e ao "sistema". "Sistema", na linguagem underground, é todo um conjunto de valores dominantes e conservadores aliados ao capitalismo e uma série de elementos que só interessam ao poder e privilégio de minorias ricas e privilegiadas.


Muitos intérpretes punk foram para a new wave. Os punks originais, vendo que os Sex Pistols mais pareciam ingênuos e inofensivos - eles se reduziram a meros palhaços do show business - , principalmente na fase do baixista Sid Vicious, partiram para uma cena radicalmente independente, com forte essência crítica, principalmente à opressão política ou mesmo à acomodação juvenil.

A importância do principal grupo hardcore, Dead Kennedys, está na figura de seu vocalista, Eric Boucher, também ativista político. Aparentemente debochado às vezes, Boucher, conhecido como Jello Biafra, tem posturas críticas sérias. Atualmente ele é também conferencista, e entre uma de suas idéias é defender o salário máximo, uma forma de limitar o enriquecimento abusivo de empresários e profissionais liberais. Jello, em suas críticas, não poupava a Igreja, o grupo racista Klu Klux Klan, os punks neo-nazistas e nem mesmo o governo norte-americano.

Em 1985 os Dead Kennedys foram processados pela justiça por serem muito agressivos. Muitos intelectuais, artistas (inclusive Frank Zappa) lutaram pela defesa da liberdade de expressão e a absolvição do grupo. O grupo ganhou a causa, mas Jello brigou com os outros três e a banda acabou em 1986. Jello seguiu sua causa humanitária e os outros três, que processam o ex-parceiro para obter participação nos lucros por direitos autorais, formaram outro grupo, D. K. Kennedys, com outro vocalista e na prática não fazendo outra coisa senão tocar as velhas músicas dos "Kennedys mortos" nos concertos. Parece coisa de Jovem Guarda, ficar vivendo sempre de glórias passadas.

Outros grupos de hardcore vieram junto com os Dead Kennedys. O mais famoso deles, curiosamente, é brasileiro. O paulista da região do ABC (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul) Ratos do Porão, liderado por João Gordo, um sujeito que com o tempo ficou extremamente obeso e recentemente (fevereiro de 2003) fez cirurgia para reduzir o estômago, fazia sobretudo críticas à política brasileira, naquela época vivendo o crepúsculo do regime militar.
O grupo, no início da década de 90, já era famoso e muito popular na Europa, e influenciou até mesmo o cenário punk da Finlândia, que chega a ter bandas cantando em português e fazendo punk rock à moda do Brasil.

A diluição do hardcore veio a partir de 1994. No Brasil, o atuante cenário rock sofria um violento processo de pasteurização, com rádios ditas "de rock" comandadas por quem não entendia coisa alguma do ramo, mas queria meter o dedo no assunto de qualquer maneira.

Com isso, oportunistas que apareciam na mídia travestidos de "gurus da cultura independente" promoveram um cenário de bandas que, sendo umas boas, outras medianas e as demais (a maioria) ruim, só superaram ao histórico rock brasileiro dos anos 80 pelo fato de serem profissionais desde o começo. Tinham empresário, equipamentos e instrumentos melhores (com exceção da bateria, que faz um som de lata insuportável), um produtor esperto, rádios poperó travestidas de rock e programas de tevê juvenis para aparecer.

O primeiro grande fenômeno foi os Raimundos. Anunciado como um grupo hardcore, esta banda de Brasília não segue realmente o gênero. Seu som é uma mistura de Ramones, Red Hot Chili Peppers e Sepultura. O lado mais pesado deles está mais próximo do heavy metal. Eles começaram misturando seu som com o forró, mas depois largaram a mistura. Tinham na figura do vocalista Rodolfo Abrantes seu integrante carismático. Com a saída dele, o grupo, com o guitarrista Digão nos vocais, perdeu o carisma que tinha, embora continuasse fiel ao seu estilo.

Com a saída de Rodolfo Abrantes dos Raimundos, para formar um grupo cujo nome é seu apelido, Rodox, outro grupo passou a absorver os fãs da banda brasiliense, o Charlie Brown Jr., de Santos, litoral paulista. Também rotulado de hardcore, o grupo santista no entanto se encaixa num skate rock convencional, com alguma influência de hip hop e de qualidade inferior ao feito nos EUA. É aquele grupo típico dos chamados playboys modernos: garotões que gostam de praia e falam gírias como "e aí, brou, tá ligado?", estereótipo personificado pela figura carismática de Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr., cujo nome nada tem a ver com o do personagem de desenho animado que é dono do cachorro Snoopy. O nome do grupo santista foi inspirado num bar localizado na orla de Santos.

Muitos grupos foram rotulados de hardcore. Do popularesco Mamonas Assassinas, passando pelo ingênuo Baba Cósmica, e bandas díspares como Los Hermanos e Acabou La Tequila, que fazem uma sonoridade mais pop. O rótulo que definia o estilo dos Dead Kennedys foi tão abusivamente utilizado pela mídia, da mesma forma que muitos pastores e padres corruptos falam em Jesus Cristo. Mas este costume vem de fora, pois até o poppy punk do Blink 182 recebeu o rótulo de hardcore.

A rotulação se deu sob uma armadilha similar àquela que fez com que muitos cantores de dance music fossem rotulados de "roqueiros": a platéia e o visual. Menosprezando o aspecto musical, os jornalistas mais leigos insistiram em chamar Michael Jackson e Madonna de "roqueiros" só por causa de uma platéia mais agitada e um visual mais arrojado. Mas, musicalmente, nenhum dos dois mega-ídolos é rock. A mesma coisa com um grupo de poppy punk, que é rotulado de hardcore só porque a platéia pula que nem loucos e se veste de forma esquisita. Mas, musicalmente, representa mais uma quase new wave tocada de uma forma agressiva.

A coisa chegou ao insustentável quando o grupo CPM 22 passou a ser definido como hardcore. Liderado por Badauí, um rapaz gordinho que parece reconstituir os estereótipos das comédias estudantis norte-americanas, o grupo até funciona nos palcos e consegue fazer canções eficazes para seu público, em termos de estilo rock e letras sobre a realidade juvenil. No entanto, o grupo é inspirado no Blink 182 e do estilo dos Dead Kennedys não há uma sombra sequer. Afinal, são muito mais comportados, alegres e até ingênuos, se comparados com os verdadeiros músicos de hardcore.

POR QUE O HARDCORE FOI DILUÍDO?

Por que a imprensa classifica hoje qualquer punk ágil, mesmo pasteurizado, de hardcore? Por que não há discernimento? Será porque a indústria quer criar novos rótulos e rotular uma banda ingênua como sendo hardcore só serve para promover essa banda? Em todo caso, a ação de leigos, seja no rádio, na imprensa escrita e na televisão, prejudica a verdadeira compreensão do punk rock e suas diversas matizes.

Há uma tendência no rock brasileiro de 1997 para cá (2003) de tentar reconstituir o cenário punk / new wave de 1979. Houve bandas com visual "devóide" (Pino Solto), bandas que faziam fusão com ska (Skamoondongos, Los Djangos, Skuba), bandas "maluquetes" como Bidê Ou Balde, ou de inclinação kitsch como Vídeo Hits, já extinta. E um monte de bandas skatistas em busca ao sucesso.

No entanto, as bandas originais dos EUA e Inglaterra de 1979 não se diziam todas hardcore, tinham um senso crítico e inteligente por trás do suposto humor "engraçadinho", tinham criatividade musical e não se deixavam colocar a "irreverência" acima da música. No Brasil, porém, as bandas estão sempre com uma piada pronta para as entrevistas, nem que seja para fazer gozação com um roadie. Mas, musicalmente, dificilmente conseguem fazer algo marcante, apesar da crítica especializada fazer muita badalação em cima, e certos jovens acreditarem nisso.

Quanto ao verdadeiro hardcore, as bandas continuam existindo, e o prognóstico é o mesmo do punk em geral. Há um "punk hardcore" diluído e inofensivo, que prefere falar da "colega gostosa da sala-de-aula" do que das injustiças sociais, mas há um hardcore autêntico que ridiculariza até as diluições do gênero. E as bandas de hardcore continuam discriminadas, sem gravadora, sem mídia, mas com um esquema de divulgação precário, independente, underground. Dessas, somente o Ratos do Porão é considerada uma banda de grande repercussão. O que dá um ânimo para os injustiçados que não comem do caviar que se alimentam os "pânquis rardicór de butique".

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