quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

As contradições legais no caso da extradição de Cesare Battisti

por José António Pinto Ribeiro, advogado e ex-ministro da Cultura de Portugal.

[transcrição de uma intervenção apresentada em sessão pública realizada em Lisboa a 12 de Fevereiro de 2011]

1. Origens do caso

Cesare Battisti é um cidadão italiano nascido nos anos 1950 que foi preso em finais dos anos 1970 e foi julgado e condenado, por decisão que transitou em julgado em 1983, a 12 anos e seis meses de cadeia. Quando estava preso, e ainda antes de a sentença transitar em julgado, em 1981, portanto quando se encontrava preso há dois anos, evadiu-se e refugiou-se no México. Depois de estar no México algum tempo, refugiou-se em França e aí viveu entre 1991 e 2004. Durante esse tempo, a República Italiana julgou de novo Cesare Battisti por crimes que tinham sido já referidos no primeiro processo, dos quais ele não tinha sido acusado, e foi de novo julgado, agora por quatro crimes de homicídio, e foi condenado por esses crimes de homicídio a prisão perpétua. Neste segundo julgamento, ele foi julgado in absentia, portanto sem ter tido qualquer participação no julgamento.

Enquanto estava refugiado em França, foi pedida pela República Italiana a sua extradição para Itália e essa extradição foi negada pelo tribunal de cassação francês com base em irregularidades da extradição. Em 2005, já depois de François Mitterrand ter sido substituído na presidência da república por Jacques Chirac, um novo pedido de extradição foi formulado e o tribunal de cassação francês permitiu a sua extradição para a Itália. Acontece que Cesare Battisti, em 2004, havia abandonado a França e havia-se refugiado no Brasil.

Refugiou-se no Brasil clandestinamente, com documentação falsa, e aí viveu até que, em 2007, foi preso preventivamente, aguardando um pedido de extradição que foi formulado em Abril de 2007 pela República Italiana. Enquanto o processo de extradição corria, em 2008, Battisti pediu que lhe fosse atribuído o estatuto de refugiado político, o qual lhe foi atribuído pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro, em representação e por delegação de competência do presidente da República do Brasil.

2. Limites da competência do STF brasileiro em processos de extradição

O Supremo Tribunal Federal brasileiro [STF] é o órgão ao qual compete verificar da regularidade do pedido de extradição e da possibilidade de essa extradição se operar, com base em um tratado celebrado entre a República Italiana e a República Federativa do Brasil em 1989, ratificado e entrado em vigor em 1993. Esse tratado permite a extradição em determinadas condições. E, verificadas essas condições, o STF autorizará essa extradição. A extradição é, no entanto, um acto da competência do presidente da República do Brasil; é a ele que compete, como chefe do executivo, proceder ou não à extradição da pessoa. No tratado entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana está estabelecido que o presidente da República dispõe ainda de alguma descricionaridade política de apreciação sobre se procede ou não a essa extradição, em função de um conjunto de considerações que lá vêm estabelecidas e que nada têm a ver com a regularidade ou irregularidade do pedido de extradição.

Esta regularidade ou irregularidade é, como dito acima, analisada pelo STF e, portanto, só depois de verificada essa regularidade é que o Chefe de Estado tem poder para decidir se faz ou não faz essa extradição.

A questão que aqui se coloca é, portanto, uma questão do funcionamento do Estado de Direito. Aquilo que a República Italiana alega é que, cumprindo regras do Estado de Direito, condenou o cidadão italiano Cesare Battisti, por duas vezes, pela prática de determinados crimes e, como essas condenações são condenações transitadas em julgado, veio requerer, ao abrigo do referido tratado de extradição, a extradição de Cesare Battisti para poder cumprir a pena a que terá sido condenado pelos tribunais italianos.

Trata-se portanto de verificar como é que este processo de extradição pode, ou não, ocorrer e de verificar se ele obedece, ou não, aos requisitos legais. É a verificação do cumprimento, ou não, das regras de direito e do Estado de Direito aplicáveis que neste momento nos importa.

3. Um refugiado político não pode ser extraditado

A primeira questão que se coloca é - ou foi - a de saber se, quando é atribuído o estatuto de refugiado político, uma pessoa pode ainda ser extraditada ou se, pelo contrário, decretado ou atribuído o estatuto de refugiado político, o processo de extradição não pode já ser decretado, quer ele tenha já sido iniciado quer não tenha sido iniciado. O entendimento legal é que, decretado o estatuto de refugiado político, um cidadão já não possa ser extraditado, uma vez que ele está nesse estatuto de refugiado e esse estauto impede a extradição.

Este é o entendimento. No entanto, o STF veio a ter o entendimento de que esse estatuto de refugiado político não pode ser concedido quando pode implicar a violação de um tratado de extradição. Este não é um entendimento correcto. Em primeiro lugar não é um entendimento pacífico e tradicional do STF que, diversas vezes, já entendeu em sentido diferente. E é manifestamente um entendimento que parece ser contrário àquilo que é a lei brasileira sobre o estatuto do refugiado político.

Mas a República Italiana veio tentar anular esse pedido de concessão do estatuto de refugiado político a Cesare Battisti pelo governo brasileiro, e essa anulação veio a ser, e está ainda a ser, discutida no STF brasileiro.

4. A decisão de extraditar é da competência do presidente da República

Há um segundo ponto que consiste em saber se, mesmo sendo decretada essa extradição apesar de já lhe ter sido atribuído o estatuto de refugiado político, o presidente da República do Brasil (que é quem tem competência para proceder à extradição, como antes se disse) tem obrigação ou está vinculado a fazer essa extradição, ou não.

E, aqui também, verifica-se que o presidente da República Federativa do Brasil, na véspera do termo do seu mandato enquanto presidente da República, e seguindo a orientação da Procuradoria-Geral da República do Brasil, e portanto da Advocacia Geral do Brasil, entendeu que havia razões legais de acordo com o próprio tratado de extradição entre o Brasil e a Itália para não proceder à extradição de Cesare Battisti.

Ou seja, temos duas decisões do executivo brasileiro, conformes à legislação brasileira e ao tratado de extradição italo-brasileiro, que foram tomadas, a primeira pelo ministro da Justiça de atribuição do estatuto de refugiado político e a segunda, a decisão de não extradição por parte do presidente da República do Brasil.

O que se verifica é que o STF tem vindo a entender, por uma maioria de 5-4, aliás não estável porque às vezes entende procedimentalmente coisas diversas por uma maioria inversa de 4-5, que aquele estatuto de refugiado não impede a extradição e que a decisão do presidente da República não é válida porque ele, não lhe cabendo apreciar a regularidade do pedido de extradição, regularidade essa decretada pelo STF, deveria proceder à extradição. Ora, o que acontece é que o tratado de extradição entre a Itália e o Brasil prevê expressamente esta possibilidade discricionária de apreciação do presidente da República sempre que existam circunstâncias que o façam entender que existe a possibilidade de a pessoa que venha a ser extraditada, o extraditando, ter a sua situação pessoal especialmente agravada no país para o qual é extraditado em função de circunstâncias especiais que esse mesmo tratado refere e indica. E o presidente da República do Brasil, seguindo parecer e proposta da Procuradoria do Brasil veio a entender que essas circunstâncias se verificavam e, portanto, a recusar a extradição. E também aqui o STF do Brasil veio a dizer que entende que não - e é isso que está em curso -, que o presidente do Brasil não pode senão cumprir a decisão do STF e que ele não tem o poder discricionário de executar ou não executar essa extradição, como se a competência do STF do Brasil não fosse uma competência de verificação da mera regularidade do pedido de extradição e fosse, sim, uma decisão judicial de extraditar.

5. O STF brasileiro incumpre e subverte a ordem jurídica do Estado de Direito

Portanto a questão que aqui se coloca é a de saber se, competindo ao STF apenas a verificação da regularidade do pedido de extradição, estão preenchidas as condições e os requisitos para que uma extradição possa ser feita e se esta decisão do STF limita, anula, destrói ou impede a decisão do chefe do executivo, o presidente da República Federativa do Brasil, de decidir, ele, se extradita ou não extradita, se cumpre ou não cumpre esse pedido de extradição.

E o entendimento generalizado é - com excepção desses cinco juízes conselheiros do SFT do Brasil - de que o presidente da República do Brasil tem competência e poderes para, em função do próprio tratado, decidir se cumpre ou não cumpre esse pedido de extradição da República Italiana.

Portanto o que aqui está em causa é uma tentativa do STF do Brasil, dessa maioria de 5-4, de limitar ou impedir um poder, que é um poder executivo de polícia, de proceder ou não à extradição. Lembro apenas que, num caso paralelo, apesar de a Câmara dos Lordes inglesa ter verificado que o pedido de extradição feito pelo juiz Garzón para a extradição de Augusto Pinochet para a Espanha, quando ele se encontrava na Inglaterra, era completamente legal e completamente regular, o governo inglês, exactamente nas mesmas circunstâncias, entendeu não extraditar Pinochet para a Espanha e, pelo contrário, permitir a sua saída para o Chile. O que temos perante nós é, relativamente ao Brasil, exactamente a mesma situação. Situação fundada no direito brasileiro, e em primeiro lugar na legislação sobre o estatuto do refugiado político. O STF do Brasil recusou-se a reconhecer esse estatuto legal como fundamento para impedir qualquer processo de extradição e, agora, a decisão do presidente da República de não extraditar, a qual o STF, por essa maiorua de 5-4, decide incumprir, isto é, decide entender que o presidente da República do Brasil não tem competência para decidir isso, uma vez que o STF tenha decido que a matéria ali está resolvida porque só a ele cabe verificar da possibilidade de extradição ou não. Assim não compreende, não aceita ou não acata o STF a regra legal brasileira que diz que o presidente da República tem competência para executar ou não executar a extradição de acordo com esse tratado.

Portanto esta é um questão de puro cumprimento do direito.

Parece-me de realçar que uma das maiores conquistas das democracias é que elas funcionem segundo regras de Estado de Direito, isto é, que a lei clara, explícita e acessível seja uma lei previsível. As duas leis em causa - o estatuto de refugiado politico e o tratado de extradição entre a Itália e o Brasil - são desse ponto de vista completamente claras, inequívocas e previsíveis. Por um lado, o estatuto de refugiado político diz que, a partir da atribuição desse estatuto, a pessoa não pode mais ser submetida a processos de extradição nem ser extraditada - é isso mesmo o estatuto de refugiado político: o refugiado não mais poderá ser extraditado. Segundo o tratado italo-brasileiro, por seu lado, mesmo que se verificasse que a extradição poderia ser decretada como pretendeu o STF do Brasil, apesar de haver um processo de extradição já concluído pela atribuição do estatuto de refugiado político ao Cesare Battisti, mesmo assim cabe ainda ao presidente da República Federativa do Brasil decidir se executa ou não executa essa extradição.

É pois indispensável que se compreenda que as leis da República são genéricas, abstractas e hipotéticas, e que o seu entendimento é claro. Não se trata aqui de nenhuma dúvida sobre a interpretação das leis ou do tratado. Trata-se, sim, de uma tentativa do STF do Brasil, de cariz juridico-político, de subverter esse Estado de Direito e de, por uma decisão judicial tomada repetidamente por 5-4, impor e forçar a extradição de Cesare Battisti contra os actos politico-administrativos lícitos, legais e conformes à ordem jurídica brasileira praticados pelo ministério da Justiça e pelo presidente da República do Brasil.

É isso que qui está em causa: uma subversão da ordem jurídica através de uma maioria do STF brasileiro. Um caso em tudo semelhante ao que aconteceu na primeira eleição de George W. Bush, quando Al Gore era o candidato democrata, e, contra todas as regras do direito americano, em vez de proceder à recontagem dos votos e ao apuramento rigoroso da eleição, o Supremo Tribunal dos EUA entendeu que não havia que proceder a essa verificação e portanto declarou um resultado eleitoral sem cumprimento da lei.

Uma decisão do STF do Brasil, como as do Supremo tribunal dos EUA, não é depois susceptível de mais recurso, pois a partir do momento em que essa decisão foi tomada ela substitui a própria lei na medida em que não há ninguém que possa impor ao STF o cumprimento da lei. Não há ninguém que vigie a regularidade desta decisão. Portanto o que temos aqui é um conflito entre um acto jurídico legal, constitucional e regular do presidente da República Federativa do Brasil, e um acto jurídico legal, constitucional e regular do ministro da Justiça (ao conceder o estatuto de refugiado político), e uma dupla decisão, sempre por maioria de 5-4, do STF do Brasil a tentar incumprir essa lei e a tentar dar uma ordem judicial que pretende que seja cumprida contra aqueles dois actos, um acórdão judicial sem cumprimento da lei.


Fonte: Cesarelivre.org

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